domingo

E era deslumbramento a raiar algo como a dor de alma

"E agora, de repente, sinto-me triste. E desta vez é a sério. Acabo de imaginar, com chocante nitidez, aquele cacto na varanda, aqueles aposentos azuis, aquele nosso apartamento num dos prédios modernaços construídos em estilo caixote, pequenos a parecer grandes, do tipo não-queremos-aqui-disparates. E aí, no meu mundo de asseio e limpeza, grassa a desordem lydiana, a doce fisgada ordinária do perfume dela. Mas os seus defeitos, a sua inocente estupidez, o seu hábito de colégio interno de se pôr com risinhos na cama não era o que realmente me aborrecia. Nunca discutíamos, nunca lhe censurei nada, por mais asneiras que ela debitasse em público ou por muito mal que se vestisse. Não tinha jeito nenhum para distinguir os padrões, pobrezinha. Achava que ficava bem se as cores principais condissessem, tanto bastava para satisfazer por completo o seu sentido de tons. Portanto, era capaz de exibir um chapéu de feltro verde-relva com um vestido verde-azeitona ou eau de Nil. Gostava de tudo «a par». Por exemplo, se o cinto fosse preto, ela achava absolutamente necessário pôr uma franjinha preta ou um folhozinho preto no decote. (...) De vida doméstica, não percebia patavina. Era um desastre a receber. Havia sempre, num piresinho, tabletes de chocolate de leite aos bocados, como oferecem as famílias pobres de província. Por vezes, perguntava a mim próprio porque diabo a amava. Talvez pela morna íris de avelã dos seus olhos penugentos ou pelo ondulado natural do cabelo castanho, penteado de qualquer maneira, ou então por aquele mover dos ombros rechonchudos. Mas provavelmente a verdade é que a amava por ela me amar. Para ela, eu era o homem ideal: miolos, genica. E nenhum se vestia melhor. Lembro-me de uma ocasião, quando vesti pela primeira vez aquele smoking novo com as calças de cós alto, que ela apertou as mãos, afundou-se numa cadeira e murmurou: «Oh, Hermann...», e era deslumbramento a raiar algo como a dor de alma."

Robert Louis Stevenson and His Wife - John Singer Sargent


2 comentários:

Rui Gonçalves disse...

Um livro magnífico. Que só conheci há pouco tempo (numa edição da Teorema, com tradução da Telma Costa).

Beatrix Kiddo disse...

Tambem li esse da Teorema