domingo

Ah, meu pobre filho, esse teu amigo é idiota

"Bloch desagradara aos meus pais por outras razões. Começara por irritar o meu pai que, vendo-o molhado, lhe dissera com interesse:
    - Então, senhor Bloch, como está o tempo? Choveu? Não percebo nada, o barómetro estava excelente.
   Só conseguira esta resposta:
    - Senhor, não posso de modo algum dizer-lhe se choveu ou não. Vivo tão resolutamente fora das contingências físicas que os meus sentidos não se dão ao trabalho de mas comunicar.
    - Ah, meu pobre filho, esse teu amigo é idiota - dissera-me o meu pai quando Bloch se foi embora. - Então ele nem sequer me pode dizer o tempo que faz! Quando não há nada mais interessante! É um imbecil.
    Além disso, Bloch desagradara à minha avó porque, depois do almoço, quando ela estava a dizer que se sentia um pouco adoentada, ele sufocara um soluço e enxugara as lágrimas.
    - Como queres tu que aquilo seja sincero - disse-me ela - se ele não me conhece? Ou então é louco.
    E, finalmente, tinha descontentado toda a gente porque, chegando para almoçar com hora e meia de atraso e coberto de lama, em vez de pedir desculpas, dissera:
    - Nunca me deixo influenciar pelas perturbações da atmosfera nem pelas divisões convencionais do tempo. De bom grado reabilitaria o uso do cachimbo de ópio e do kriss malaio, mas ignoro esses instrumentos infinitamente mais perniciosos e aliás chatamente burgueses, que são o relógio e o guarda-chuva."


3 comentários:

josépacheco disse...

caríssima beatrix kiddo. o seu perfeitíssimo sentido da escolha, que selecciona oportunamente passagens extraordinárias de proust, tem feito mais por esta obra magnífica do que várias abordagens académicas maçudas. sabe que mais? instigado pelas suas citações, não resisti, já estou a relê-lo (uma vez mais, proust é um dos poucos autores que me apetece e consigo reler...)

Beatrix Kiddo disse...

eheh muito obrigada. Eu "tenho estado a ler Proust", com calma e sem pressa, e um dia estarei aqui a pôr excertos do volume...2...3...

Paulo Assim disse...

Curiosamente, também ando a ler. Mas vai devagar, sim.
Gosto de pensar que o Tempo Perdido mais não é do que um longo, longo, longo poema...
(Tenho a tradução do Pedro Tamen, que é, a meu ver excelente, diria mesmo soberba)