quarta-feira

O Tolan Baranduna ® diz:

"Terminei o La Carte Et le Territoire do Michel Houellebecq, à custa de anti-sociais almoços em dias de trabalho. Descobri que é melhor dizer que tenho um "almoço combinado" do que dizer simplesmente "quero almoçar sozinho para ler". Enquanto a primeira justificação é recebida com um piscar de olhos cúmplices e um comentário dúbio como "então bom almoço ;)", a segunda provoca alguma estupefacção, desconfiança e insinuações relacionadas com autismo.

Há restaurantes detestáveis para ir almoçar em circunstâncias normais devido à lentidão do serviço mas que se tornam perfeitos quando temos um livro para ler. Eu não interrompo a leitura para comer, nem que tenha de cortar a comida em bocadinhos durante um ou dois minutos e depois usar apenas o garfo.

Andei a tentar esgalhar um texto sobre o La Carte et Le Territoire há muito tempo, talvez até antes de o ler. O Houellebecq é o meu escritor contemporâneo de eleição e fico soulagee por ser francês embora conste que seja odiado em França. Gosto muito do meu Michel. Não diria que este romance em particular é brihante.

Tenho toda uma longa teoria sobre o que impede la Carte Et Le Territoire de ser um grande livro. Já a contei a um amigo, o tal que é pai, mas ele ouviu-me enquanto abanava o bebé para ele arrotar e colocava um dedo na fralda para ver se tinha merda, de maneiras que não conta. Também tentei explicar isto à Princesa, enquanto jogávamos Bowling no playcenter do Colombo, mas os meus esforços foram infrutíferos. Deposito a minha esperança em leitores virtuais desinteressados.

O termo intelectualismo, que eu inventei agora, refere-se à tendência que alguns escritores têm de enfiar um ensaio sobre um tema ou fazer reflexões exógenas à narrativa, normalmente apoiadas em referências eruditas (enfim, mais ou menos eruditas). É o motivo pelo qual, com o tempo, passei a considerar um livro que tinha adorado na néscia adolescência, A Montanha Mágica do Thomas Mann, uma bela porcaria presunçosa. Mas na minha memória as coisas vão destilando, destilando, até sobrar uma ideia extrema ao fim de alguns anos, normalmente uma ideia depreciativa.

No caso do Houllebecq, um exemplo deste intelectualismo são as páginas sobre a relação da arquitectura com a sociologia e a política, contada pela voz do pai do protagonista, um arquitecto moribundo. O problema destes ensaios, mesmo disfarçados como diálogos, é que topamos imediatamente que aquilo vem de uma cena que o gajo está a ler e que, para além de ali estar para dar densidade ao universo da personagem e à própria personagem, também cumpre um objectivo simbólico bastante evidente. O objectivo do Houellebecq, eu percebo-o muito bem, é colocar o ser humano, irrelevante, decrépito e animal, numa espécie de enquadramento social ou natural. Embora em menor grau, a caracterização de um comissário da polícia sofre da mesma enfermidade, o universo da polícia é esquadrinhado, por vezes com números (salário), progressão da carreira etc. Assim, um inspector é definido pelo seu salário, pela carreira, da mesma forma que o arquitecto jovem é vítima de correntes políticas que opõem arquitectos, fala-se de Gropius, Le Corbusier, Mies Van Der Rohe, comunismo, capitalismo etc. tudo conceitos abstractos que são tornados ridículos e superficiais pelo contraste com a natureza. Um exemplo é função reprodutiva das personagens, as personagens e os cães das mesmas, apresentam problemas de esterilidade ou impotência, a reprodução das moscas que infestam um cadáver é descrita em parágrafos sucintos cheios de pormenores numéricos e realçam este aspecto da Natureza, a de existir por regras próprias a que o homem faz vãs tentativas para lhes escapar. Nada disto é especialmente novo, desde o Robinson Crusoe do Daffoe que fundou as bases para o "bom selvagem" do Rousseau.

Uma boa objecção que me podiam fazer era o Dostoiévski - caso vocês fossem do tipo de fazer objecções como no tribunal - ser um dos meus escritores preferidos, ele tem sempre uns quantos gajos nos seus romances a fazerem grandes monólogos filosóficos ou políticos, representando um determinado estereótipo e mesmo as suas personagens e histórias encaixam numa análise da realidade. Contudo, eu contraponho que não me lembro de ver intelectualismo nos livros de Dostoiévski, os diálogos que vemos nos seus livros representam a sua própria angústia interna e diferentes facetas biográficas: o Dosto jovem político, o Dosto cristão, os seus ataques de epilepsia clarividente, o místico, o ciumento, o filho do pai tirano, o jogador etc.

É legítimo que o Houellebecq queira apenas escrever livros sossegado, sente-se isso na sua escrita, uma grande confiança, um prazer, uma ironia adulta e que se está a borrifar para essas ambições maiores. Um leitor como eu fica apenas frustrado, mas não tanto como fica a ler os livros do Philip Roth, esses sim ambiciosos, muito ambiciosos, mas longe de serem aquilo que o autor provavelmente pensa que são."


Em relação à estupefacção com que é recebida a frase "quero almoçar sozinho para ler", lanço aqui o apelo:


4 comentários:

josé luís disse...

o sr. joão águas tem toda a razão

[embora o último "them" pudesse estar a referir-se aos livros ;)]

johnny guitar disse...

Como é que um homem que só fala em foder quando se tem 70 anos pode ter a ilusão de pensar que os seus livros são "maiores do que a vida"? A não ser que estejas a falar da Pastoral ou vá lá, do Teatro... de qualquer forma, foi o primeiro e até agora único escritor vivo a ser catalogado pela Library of America.

Quanto ao Michel, tenho pena mas não tenho paciência. Um pormenor: A alusão nesta crítica às leituras correntes do autor que transparecem no seu próprio texto. Essas leituras correntes até já deram polémica ao copiar secções inteiras da wikipedia, sendo o exemplo mais famoso o das moscas neste seu mapa e território.

Windtalker disse...

O J.Waters embora sintético não deixa de ter razão!...É como jantar com um(a) parceiro(a) e passar o serão a ouvir falar dos Ìdolos. O síndrome será o mesmo!
Quanto ao Houellebecq e ao Roth, o assunto é mais delicado e a polémica, naturalmente óbvia. Só por isso, é de se lhes tirar o chapéu.

Beatrix Kiddo disse...

Nunca li Houellebecq nem Roth e sei muito pouco ou nada de ambos.

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